Um Arqueólogo do genoma: Svante Pääbo Understand article

Tradução de Guadalupe Jácome. O geneticista evolutivo Svante Pääbo conta a Eleanor Hayes como faz “escavações” no genoma para compreender a evolução humana.

O recém construído
Advanced Training Centre no
European Molecular Biology
Laboratory em Heidelberg,
Alemanha. Consegue ver as
semelhanças com a dupla
hélice de DNA? Clique na
imagem para ampliar

Imagem cortesia de EMBL
Photolab

Sempre imaginei os arqueólogos com lama até aos joelhos, desenterrando ossos, cacos ou joias antigas. Mas quando me encontrei com ele, Svante Pääbo não estava nem enlameado nem sequer ao ar livre.

Ao invés, e de um modo bastante apropriado, encontrámo-nos no novíssimo Advanced Training Centre no European Molecular Biology Laboratory (EMBL) em Heidelberg. Inspirado na molécula de DNA, o edifício tem dois corredores helicoidais de gabinetes e pontes de ligação em vidro, que representam as pontes de hidrogéniow1.

Porquê a ligação entre DNA e Arqueologia? “ De certo modo, os meus colegas e eu fazemos o mesmo que os arqueólogos,” explica o Professor Pääbo, “escavações, não numa gruta antiga, mas no nosso genoma. Estudamos as nossas sequências de DNA em busca de vestígios da nossa história, para descobrir, por exemplo, de onde viemos e como interagimos com outros grupos humanos.”

Como é que chegou a este campo de investigação, pergunto eu? Ele explica que um fascínio precoce pelo Egito, “alimentado” por férias passadas com a mãe nesse país, o levaram a estudar Egiptologia na Universidade de Uppsala, na Suécia. No entanto, os seus sonhos românticos saíram gorados “Aprendíamos sobre as formas das palavras do antigo Egito em vez de escavar múmias e pirâmides, como eu tinha imaginado”. Desapontado, decidiu estudar medicina ao que se seguiu um doutoramento em Imunologia Molecular.

Porém, a sua atração pelo Egito não desapareceu. Na década de 80 do século XX, a análise da sequência do DNA estava no início. Certamente, pensou Svante Pääbo, alguém deverá ter tentado extrair DNA de múmias egípcias. “ Eu sabia, dos meus estudos de Egiptologia que existem milhares de múmias em museus e centenas de outras são descobertas todos os anos no Egito.

Imagem cortesia de sculpies /
iStockphoto

No entanto, na literatura científica, não parecia haver nada sobre o assunto. Assim, comecei eu próprio a trabalhar nisso.” Sabendo que o seu orientador de doutoramento não aprovaria, conseguiu a ajuda do seu antigo professor de Egiptologia e realizou o trabalho de laboratório à noite e aos fins de semana. O resultado foi o sonho de qualquer jovem cientista: um artigo publicado na Nature (Pääbo, 1985).

Escavações no local em que
‘Ötzi’ foi encontrado, nos
Alpes Ötztal

Imagem cortesia de South Tyrol
Museum of Archaeology

Após o doutoramento, em parte por causa do seu artigo na Nature, Svante Pääbo mudou para a Universidade da Califórnia em Berkeley, Estados Unidos, onde começou a dar-se conta de como era difícil evitar a contaminação quando se trabalha com amostras humanas antigas. Seria mesmo DNA do antigo Egito aquele que extraíra de múmias ou teria estado a sequenciar DNA de anteriores antropólogos? Então concentrou-se em extrair DNA de outros exemplares antigos incluindo o de espécies extintas, como o lobo marsupial e a moa, uma ave gigante que não voava.

‘Ötzi’, o corpo com 5000 anos
encontrado preservado no
gelo no vale de Ötztal, Alpes,
em 1991

Imagem cortesia de South Tyrol
Museum of Archaeology

Quando, em 1990, mudou para a Universidade de Munique, Alemanha, para assumir uma cátedra com apenas 35 anos, continuou a trabalhar em DNA de organismos antigos, incluindo mamutes. O advento da polymerase chain reaction (reação em cadeia da polimerase) – PCR – permitiu que os cientistas rapidamente replicassem amostras de DNA e tornou, portanto, muito mais fácil verificar se havia contaminação, fazendo muitas experiências idênticas e usando controlos. Isto encorajou o Professor Pääbo a voltar a trabalhar com DNA humano antigo. Desta vez fazia parte de uma equipa que se debruçava sobre o DNA de um europeu contemporâneo dos antigos egípcios: Ötzi, o corpo de um homem morto há 5.000 anos, encontrado preservado no gelo, nos Alpes Ötztal, junto à fronteira entre a Áustria e a Itália, em 1991.

Inspirado pelo sucesso da investigação que mostrou que o DNA mitocondrial de Ötzi (ver diagrama abaixo) era muito semelhante ao das populações do centro e do norte da Europa (Handt et al., 1994), Svante Pääbo continuou a recuar no tempo – cerca de 38.000 anos em direção ao passado. Pretendia utilizar a análise de DNA para investigar as origens do Homem.

Genoma é todo o conjunto de instruções genéticas que existem numa célula. No Homem, o genoma consiste em 23 pares de cromossomas presentes no núcleo (o genoma nuclear) e num pequeno cromossoma presente nas mitocôndrias celulares (o genoma mitocondrial). Em conjunto, estes cromossomas contêm, aproximadamente, uma sequência de DNA de 3,1 milhares de milhões (3,1×109) de pares de bases.
O DNA nuclear é herdado de ambos os progenitores: cada um deles contribui com um cromossoma para cada par, de modo que os descendentes têm metade dos cromossomas da mãe e a outra metade do pai.
Contrastando com isto, as mitocôndrias, e portanto o DNA mitocondrial, passam exclusivamente da mãe para os(as) filhos(as)

Imagem cortesia de Darryl Leja, NHGRI / NIH

“Uma das grandes perspetivas surgida nos últimos 20 anos neste campo é que o Homem moderno veio de África bastante recentemente,” Explica o Professor Pääbo. Apesar de viverem muito menos pessoas em África que fora dela, “se olharmos para a variação nas sequências de DNA humanas, vemos que a maior parte existe em África e toda a gente fora de África é um sub-conjunto dessa variação. Percebe-se que durante os últimos 100.000 anos, um grupo de africanos deixou a África e colonizou o resto do mundo. Por isso gosto de dizer que, de um ponto de vista da Genética Molecular, somos todos africanos; quer vivamos em África quer tenhamos sido recentemente exilados.

O que aconteceu quando o
Homem moderno encontrou
Neandertais?

Imagem cortesia de the
Neanderthal Museum,
Alemanha

Mas os Homens modernos, Homo sapiens, não eram os únicos humanos que andavam por aí nessa altura, os nossos parentes Neandertais (H. Neanderthalensis) deambulavam pela Europa e pelo oeste da Ásia (o Próximo e o Médio Oriente) no período compreendido entre os 300.000 e os 30.000 anos atrás. Desde a descoberta, em 1856, de alguns ossos humanos com um aspeto estranho no vale de Neander, perto de Düsseldorf, na Alemanha, gerou-se grande controvérsia sobre o destino dos Neandertais. Quando os homens modernos migraram de África mataram os Neandertais? Competiram com eles? Ou cruzaram-se com eles? Quando nós, europeus, vemos a imagem de um Neandertal estaremos a olhar para um dos nossos antepassados remotos? Svante Pääbo e os seus colegas decidiram descobrir, comparando DNA extraído de ossos de um exemplar de Neandertal com 38.000 anos com DNA de várias populações humanas modernas.

Os resultados foram fascinantes: O Homem moderno não Africano é portador de algumas sequências de DNA semelhantes às dos Neandertais que não se encontram em africanos. De facto, os dados dos cientistas sugerem que entre 1 e 4% do genoma dos não africanos derivou dos Neandertais (Noonan et al., 2006).

“A explicação mais simples é que, quando o Homem moderno deixou a África pela primeira vez, fê-lo pelo Médio Oriente e a partir daí colonizou o resto do mundo. No Médio Oriente, reproduziu-se por cruzamento com Neandertais e os seus descendentes transportaram as sequências de DNA Neandertal com eles para a Austrália, a Papua Nova Guiné ou as Américas,” explica o Professor Pääbo. Só as populações africanas não foram afetadas (ver diagrama abaixo).

Svante Pääbo crê que quando o Homem moderno deixou África o fez pelo Médio Oriente, cruzou-se com Neandertais após o que colonizou o resto do mundo, transportando sequências de Neanderthal consigo
Imagem cortesia de Nicola Graf
Imagem cortesia de the South
Tyrol Museum of Archaeology /
Kennis / Ochsenknecht

“O que é tão fascinante para mim é que, com a análise das sequências de DNA, podemos responder a perguntas que não podemos fazer quando olhamos para esqueletos humanos antigos ou para os artefactos que deixaram.”

Desde 1997 que, fiel ao seu fascínio pelas origens humanas, o Professor Pääbo é Diretor do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, em Leipzig, Alemanha.

Neste instituto, investigadores nas áreas científica e humanística estudam a história da humanidade comparando os genes, as culturas, as capacidades cognitivas, as linguagens e os sistemas sociais, de populações humanas passadas e presentes bem como de primatas com graus de parentesco próximos dos seres humanos.

De que modo faz a sua investigação? Pergunto eu. “O meu trabalho é no laboratório, mas colaboramos com pessoas que fazem escavações em busca de ossos ou com curadores de museus que recebem ossos. E cada vez mais, porque podemos olhar para genomas inteiros e não só para pequenos fragmentos, é crucial analisar dados com computadores.” Svante Pääbo, um investigador de laboratório que gosta de ter “as mãos na massa”, acha essa necessidade, por vezes, frustrante. “Eu não conheço, verdadeiramente, os meandros da bioinformática por isso estou nas mãos das pessoas que os conhecem. Atualmente, quando treinamos os nossos alunos, garantimos que aprendam ambos os lados: os jovens cientistas que trabalham essencialmente com computadores têm de passar algum tempo no laboratório para perceber como as coisas se passam e vice-versa.”

 

@EIROforum: ESRF research

Uma das utilizações mais excitantes dos raios-x de grande intensidade produzidos no European Synchrotron Radiation Facility (ESRF)w2 é o estudo não invasivo dos fósseis. Dentes fósseis, em particular, contêm informação essencial visto que pode ser usada para determinar a idade exata de um jovem à data da sua morte: contando as linhas de crescimento diário no esmalte dentário.

Uma descoberta notável resultante de estudos recentes é que os Neandertais atingiam o estado adulto consideravelmente mais depressa que o Homem moderno, H. sapiens, incluindo alguns dos primeiros grupos que deixaram África há 90-100.000 anos. O padrão presente nos Neandertais, H. neanderthalensis, parece ser intermédio entre o que se encontra nos membros mais antigos do género (como H. erectus) e os humanos atuais (H. sapiens). Isto sugere que um desenvolvimento lento e uma infância longa são característicos de H. sapiens e que o género Homo mudou da característica primitiva “vive depressa e reproduz-te cedo” para uma estratégia de “cresce lentamente e aprende com os teus pais” o que ajudou o homem moderno a atingir a posição que hoje ocupa no nosso planeta.

Para saber mais ver os comunicados de imprensaw3 ou as publicações originais: Macchiarelli et al. (2006) e Smith et al. (2010).

ESRF é um dos membros do EIROforumw4, o editor de Science in School.

Imagem cortesia de Mauricio
Antón / PLoS Biology

Atualmente o professor Pääbo está a trabalhar num parente ainda mais afastado que o Neandertal. À partida, ele e os seus colegas tinham muito pouco por onde começar: só a sugestão de um pequeno osso de um dedo encontrado no sul da Sibéria. Os cientistas sabiam que este osso pertencia a uma qualquer espécie de hominídeo ou seja, um tipo humano, mas inicialmente sabiam muito pouco mais sobre ele. Qual era o seu aspeto? Quão disseminado estaria? Poderia ter sido um tipo de hominídeo que existisse na Ásia enquanto os Neandertais estavam limitados apenas às regiões mais ocidentais?

Os cientistas começaram por sequenciar o genoma mitocondrial e descobriram que era muito diferente quer do do Homem moderno quer do dos Neandertais. Comparando as sequências de DNA dos três grupos puderam fazer uma estimativa de há quanto tempo se iniciara a sua divergência evolutiva. (Para saber como fazer isto na aula, ver Kozlowski, 2010.)

Apesar de o último ancestral comum a Neandertais e homens modernos ter vivido há meio milhão de anos, o hominídeo misterioso divergiu do ancestral de ambos há cerca de um milhão de anos. O pequeno fragmento de osso pertenceu a um parente humano realmente afastado.

Esta é a primeira vez que um novo hominídeo foi descrito simplesmente pela sua sequência de DNA mas Svante Pääbo acredita que estas análises se tornarão cada vez mais vulgares. “Este pequeno fragmento de osso quase não tem informação sobre o aspeto do indivíduo mas, se estiver suficientemente bem preservado, o nosso próximo passo será reconstituir a totalidade do genoma a partir dele. Acho que no futuro descreveremos os organismos recém-decobertos pelo seu DNA, de preferência a fazê-lo pelo seu aspeto.

Este artigo é baseado numa entrevista com Svante Pääbo no European Molecular Biology Laboratory em junho de 2010.


References

Web References

  • w1 – Para uma visita virtual ao novo edifício do Laboratório Europeu de Biologia Molecular (EMBL), o principal laboratório da Europa para a investigação basica em Biologia Molecular, em Heidelberg, Alemanha, ver: www.embl.de/events/atc/tour
    • EMBL é membro do EIROforumw4, a editor de Science in School. Para saber mais, ver www.embl.org

  • w2 – Um centro de investigação internacional em Grenoble, França, o ESRF produz feixes de raio-X de alta energia que são usados, anualmente, por milhares de cientistas de todo o mundo. Para saber mais, ver: www.esrf.eu
  • w3 – Os press releases sobre a investigação em Neandertais no ESRF estão disponíveis no site do ESRFw2 ou através dos links http://tinyurl.com/neanderteeth e http://tinyurl.com/neanderkids
  • w4 – Para mais informações sobre o EIROforum, ver: www.eiroforum.org

Resources

Author(s)

A Doutora Helen Hays é a editora chefe da Science in School. Estudou Zoologia na Universidade de Oxford, Reino Unido, e concluiu um doutoramento em Ecologia dos Insetos. Passou alguns tempo a trabalhar na administração da Universidade, antes de mudar para a Alemanha e se dedicar à publicação científica, inicialmente para uma empresa de bioinformática e depois para uma instituição científica. Em 2005 entrou no European Molecular Biology Laboratory para lançar a Science in School.

Review

A ciência de ponta não se limita ao futuro – a moderna tecnologia pode também aprofundar o conhecimento do passado. Este artigo sobre como o estudo do genoma contribui para a investigação em Arqueologia, (pode ser) utilizado nas aulas de Biologia para motivar os alunos para o estudo da Genética e da Evolução. Pode também servir de ponto de partida para alguma investigação interdisciplinar ligando a Biologia e a História, talvez tirando partido de ‘Ötzi’.

Algumas questões de compreensão e aplicação:

  1. Usando os seus conhecimentos sobre a estrutura do DNA, comente a arquitetura do edifício em forma de DNA.
  2. Explique a tecnologia do PCR.
  3. Explicite a afirmação “de um ponto de vista da Genética Molecular, somos todos africanos”.
  4. Explique de que modo os cientistas sequenciaram o genoma mitocondrial. Por que razão se concentraram no genoma mitocondrial em vez de o fazer no genoma nuclear?

O artigo pode também ser usado como ponto de partida para discussão sobre, por exemplo:

  • A importância da reprodutibilidade das experiências e dos controlos (por que razão o PCR foi tão importante)
  • O desenvolvimento do conhecimento científico (para cada indivíduo ou para a nossa espécie em geral – ver também Rau, 2010)
  • A interdisciplinaridade da Ciência
  • Ética (apesar das diferenças, como a cor da pele, “somos todos africanos”).

Betina da Silva Lopes, Portugal

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