Selecção natural a nível molecular Understand article

Traduzido por Artur Melo. Sabemos que determinadas sequências genéticas podem ajudar-nos a sobreviver no nosso meio ambiente – o que é a base da evolução. Mas demonstrar quais as sequências genéticas que são benéficas e como nos ajudam a sobreviver não é fácil – especialmente em…

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Quando os humanos saíram pela primeira vez de África, há cerca de 150 000 anos, estabelecendo-se nos vales do Tigre e do Eufrates, navegando pelas ilhas da Indonésia e migrando através do estreito de Bering para a América, encontraram muitos desafios. Vindas das savanas quentes e secas, as populações tiveram que se adaptar às condições locais, e, consequentemente, ao longo das gerações, a fisiologia e a aparência foram mudando (Harris & Meyer, 2008). A pele das pessoas tornou-se mais clara depois de terem vivido em regiões menos ensolaradas (Lamason et al., 2005). As populações que bebiam leite de animais domesticados mantiveram a capacidade de digerir a lactose durante a fase adulta, uma característica perdida logo após a infância nos grupos que não bebiam leite (Tishkoff et al., 2007). As populações que comiam alimentos ricos em amido produziam mais amilase salivar, a enzima que intervém na degradação do amido (Perry et al., 2007).

Map-of-human-migrations.jpg:Mapa mundial das migrações humanas, com o Pólo Norte no centro. África, a origem da migração, está no canto superior esquerdo, e a América do Sul à direita. Os padrões de migração baseiam-se em estudos de ADN mitocondrial (matrilinear).
Os números representam milhares de anos até ao presente.
A linha azul representa a área ocupada por gelo e tundra durante a última idade glaciar. As letras são os haplogrupos de ADN mitocondrial (linhagens maternais puras); os haplogrupos podem ser usados para definir populações genéticas e apresentam frequentemente um padrão geográfico.
Por exemplo, são divisões comuns para haplogrupos de ADNmt as seguintes:
Áfricano: L, L1, L2, L3, L3
Médio Oriente: J, N
Sul Europeu: J, K
Europeu em Geral: H, V
Norte Europeu: T, U, X
Ásiático: A, B, C, D, E, F, G (nota: M é constituída por C, D, E, e G)
Americano Nativo: A, B, C, D, e por vezes X.
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Supõe-se que pelo menos algumas destas modificações tenham sido consequência da selecção positiva (ver glossário dos termos em itálico). Isto significa que em determinado ambiente (a pressão selectiva) no passado, os indivíduos que apresentavam uma sequência de ADN vantajosa sobreviveram e deixaram mais descendentes, relativamente aos indivíduos com uma sequência diferente, menos benéfica. Actualmente, usando as sequências genómicas de várias espécies, incluindo os humanos e os seus parentes evolutivos mais próximos, os cientistas conseguem comparar caracteres e sequências de ADN de populações ou espécies com diferentes nichos ecológicos e de diferentes meios ambientes, para identificar quais as sequências que terão participado nas adaptações. Este estudo, por outro lado, permite aos investigadores pesquisar a função de determinada sequência de ADN e o seu potencial valor adaptativo para um organismo.

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Alguns dos genes, que sabemos influenciarem a cor da pele em humanos, apresentam um padrão geográfico específico de variação da sequência; em particular, comparações de sequências entre populações de europeus e africanos sugerem que a variação na cor da pele se deve a selecção positiva. A brancura da pele relaciona-se positivamente com o aumento da latitude, e várias hipóteses têm sido propostas para explicar os seus potenciais efeitos benéficos.

Uma das hipóteses, que estabelece que a pele clara favorece a produção de vitamina D, é apoiada pela observação de que pessoas de pele escura, que vivem em latitudes elevadas, sofrem de deficiência de vitamina D. Além disso, a pele clara é mais sensível aos efeitos nocivos da luz solar: a maior exposição à luz solar está relacionada com o aumento de incidência de cancro da pele em pessoas de pele clara. Por isso, a pele clara em populações humanas, que vivem em latitudes superiores, pode ser um compromisso evolutivo entre a protecção aos efeitos carcinogénicos da luz solar e a permissão de produção suficiente de uma vitamina essencial.

Imagem ao microscópio
electrónico de varrimento de
glóbulos vermelhos
falciformes e normais

Imagem cortesia de EM Unit,
UCL Medical School, Royal Free
Campus / Wellcome Images

Apesar de ser uma hipótese consistente, as evidências que a suportam são indirectas. Uma demonstração directa do valor adaptativo desta característica exigiria determinar se, a latitudes superiores, os indivíduos com pele mais clara apresentam melhor sobrevivência e capacidade de reprodução. Tais demonstrações na nossa espécie, no entanto, são difíceis: experiências de sobrevivência (nas quais indivíduos com diferentes características são expostos a determinado ambiente para verificar quais os que sobrevivem) não podem ser realizadas em humanos, e o nosso elevado tempo de geração torna difícil investigar diferenças nas taxas de reprodução. As circunstâncias em que é possível observar o valor adaptativo de qualquer carácter em humanos são, por isso, muito limitadas – mas elas existem.

Um mosquito com o
abdómen cheio de sangue.
Esta espécie, Anopheles
stephensi
, é o insecto vector
que transmite a malária na
Índia e no Paquistão

Imagem cortesia de Hugh
Sturrock / Wellcome Images

Um dos exemplos envolve duas doenças: a anemia falciforme e a malária. O gene relacionado com a anemia falciforme tem duas variantes, ou alelos: um alelo ‘normal’ e um alelo ‘falciforme’. Indivíduos com dois alelos falciforme sofrem de anemia falciforme grave, enquanto que os que têm um alelo falciforme e um normal não exibem esses sintomas graves. Os registos de mortalidade sugerem que o alelo falciforme pode, contudo, ser vantajoso: em populações expostas ao parasita da malária, os indivíduos que possuem um alelo falciforme e um alelo normal têm maior probabilidade de sobreviver que as pessoas que possuem dois alelos normais, porque o parasita (Plasmodium falciparum) precisa de glóbulos vermelhos saudáveis para entrar e para se multiplicar. Por isso, a frequência do alelo que provoca a anemia falciforme aumenta em grupos expostos à malária – o alelo é adaptativo neste ambiente.

Comparação da distribuição da malária (esquerda) e da anemia falciforme (direita) em África
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Outro exemplo que demonstra o valor adaptativo de um carácter humano está relacionado com um fragmento do cromossoma 17, que se sabe ter estado invertido nos nossos antepassados há mais de três milhões de anos (Stefansson et al., 2005). O facto desta variante se ter espalhado pelas populações europeias, sugere que ela foi positivamente seleccionada – conferiu vantagem aos indivíduos que a possuíam. Através da determinação do genótipo de quase 30 000 islandeses, os cientistas que investigaram a hipótese conseguiram determinar que, durante os últimos 80 anos, indivíduos que possuíam a sequência alterada tinham em média 3.2% mais descendentes por geração do que indivíduos com a sequência normal, uma explicação plausível para como a alteração se espalhou tão rapidamente.
Apesar dos dois exemplos demonstrarem, de forma clara, a acção recente da selecção positiva em humanos, os mecanismos moleculares que explicam como as variações da sequência conferem as vantagens, não são bem compreendidas e devem ser investigados caso-a-caso. Para elucidar as relações de causalidade entre as sequências de ADN putativamente adaptativas e a aptidão de um indivíduo, os cientistas voltam-se para organismos que são mais fáceis de usar em experiências que os humanos.

Por exemplo, a cor do pêlo no rato Oldfield, Peromyscus polionotus, está de acordo com a cor do solo do habitat, fornecendo camuflagem. Os ratos que vivem nas areias brancas das praias da Florida são muito mais claros que os ratos, da mesma espécie, que vivem no interior. O valor adaptativo desta característica foi demonstrado experimentalmente há mais de 30 anos: ratos com pêlo que combina com a cor do solo eram menos frequentemente comidos pelas corujas que os ratos menos camuflados. Porém, os cientistas só recentemente identificaram os ‘loci’ genéticos que suportam este carácter adaptativo (Hoekstra et al., 2006): a variação da cor do pêlo depende fundamentalmente de vários alelos do gene McR1. A proteína codificada por este gene age como interruptor bioquímico que controla a produção tanto de eumelanina, um pigmento escuro na pele, como de feomelanina, um pigmento claro. Os diferentes alelos do gene McR1 activam a via de produção de pigmentos de forma diferente, favorecendo a produção de um pigmento ou do outro.

Micrografia electrónica de
varrimento de agregados de
bactérias Staphylococcus
aureus resistentes à
meticilina

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Cavanagh / Wellcome Images

Outro exemplo de relação causal demonstrado envolve a Staphylococcus aureus, uma bactéria que provoca várias doenças, incluindo a pneumonia e a inflamação das válvulas cardíacas. Numa rara experiência natural, um doente com infecções de S. aureus recorrentes foi medicado durante três meses com vancomicina, um dos poucos antibióticos que ainda é eficaz contra a S. aureus. Antes, e periodicamente ao longo do tratamento, os cientistas recolheram amostras do agente patogénico e sequenciaram a totalidade do genoma da primeira e da última amostra. Quando compararam os três milhões de pares de bases (as ‘letras’ do código genético) que constituem o ADN desta bactéria, descobriram apenas 35 diferenças entre a primeira e a última amostra.

Mas ao sequenciar parcialmente as amostras intermédias, os cientistas descobriram a ordem pela qual as alterações devem ter ocorrido. Através de testes da resistência bacteriana à vancomicina in vitro, em diferentes amostras, conseguiram relacionar determinadas alterações genéticas com os efeitos no crescimento e resposta das bactérias ao medicamento. Por exemplo, a diferença entre a primeira e a segunda amostras de bactérias consistia na substituição de seis nucleótidos (alterações nas ‘letras’) em dois genes. Estas seis mutações foram claramente vantajosas: quadruplicaram a tolerância da bactéria à vancomicina, permitindo às bactérias que possuem estas mutações sobreviver e reproduzir-se melhor, tornando-se mais comuns no corpo do paciente. Vinte e seis mutações posteriores duplicaram a tolerância, produzindo efectivamente uma estirpe de S. aureus tolerante à vancomicina (Mwangi et al., 2007).

Em suma, investigar a base molecular da evolução adaptativa em populações no estado selvagem não é fácil. Os desafios incluem a definição das pressões selectivas, a identificação das sequências de ADN que sustentam os caracteres associados, medir as aptidões individuais, e encontrar explicações mecanísticas para a influência das alterações da sequência nos caracteres adaptativos. Contudo, utilizando organismos-modelo e inovações tecnológicas recentes, estas investigações estão já a tornar-se exequíveis, aumentando o nosso conhecimento em como determinadas alterações a nível genético permitem aos organismos adaptar-se ao seu meio ambiente.

 

Glossário

Valor adaptativo: um carácter possui valor adaptativo se permite ao indivíduo sobreviver e reproduzir-se melhor, num dado ambiente, que os indivíduos que não apresentam esse carácter. Mais formalmente, um carácter é considerado como adaptativo se aumentar a sua aptidão (fitness)

Alelo: uma variante de um gene.

Aptidão: um termo formal de difícil definição usado em biologia evolutiva e genética de populações; refere-se à quantidade média de descendentes ao longo de uma geração associados a um genótipo, comparada com outro genótipo, numa população. Assim, genótipos que produzem mais descendentes apresentam maior aptidão. Para uma boa perspectiva global sobre aptidão e genótipo, ver Wikipediaw1.

Genoma: todo o ADN de um organismo. É normalmente associado ao ADN nuclear, em oposição ao ADN mitocondrial ou dos plastos. Para mais informações, ver ‘What is a genome’ no website da ‘National Library of Medicine’ dos EUAw2.

Selecção positiva: a selecção natural é um dos mecanismos de evolução; relata a sobrevivência e reprodução diferencial de indivíduos em determinado ambiente. A selecção natural designa-se ‘positiva’ quando estimula determinados caracteres que ajudam os indivíduos que os possuem a sobreviver e a reproduzir-se melhor que os outros.

Pressão selectiva: uma variável do ambiente (por exemplo, temperatura; presença de parasitas; predação ou agressão por parte de elementos da mesma espécie) que impõe a sobrevivência e reprodução diferencial dos indivíduos.

Carácter: um ou vários aspectos das caraterísticas de um organismo (por exemplo, altura; resistência a antibióticos; capacidade de ver cores ou de enrolar a língua).

Agradecimentos

O autor agradece a David Hughes, Mehmet Somel e Ania Lorenc pelos comentários úteis ao artigo.


References

  • Harris EE, Meyer D (2006) The molecular signature of selection underlying human adaptations. American Journal of Physical Anthropology 131(S43): 89-130. doi: 10.1002/ajpa.20518
    • Este artigo fornece uma boa perspectiva da investigação sobre a evolução molecular em humanos.
  • Hoekstra H et al. (2006) A single amino acid mutation contributes to adaptive beach mouse color pattern. Science 313: 101-104. doi: 10.1126/science.1126121
    • Este e outros documentos sobre a cor do pêlo em ratos, publicados pelo grupo de investigação de Hopi Hoekstra, estão disponíveis no website da Universidade de Harvard. Ver: www.oeb.harvard.edu/faculty/hoekstra/Links/PublicationsPage.html
    • Ver também o relatório no qual a descoberta de Agouti, um regulador negativo do McR1 que contribui para a cor adaptativa do pêlo em Peromyscus, é descrita:
    • Steiner CC, Weber JN, Hoekstra HE (2007) Adaptive variation in beach mice produced by two interacting pigmentation genes. PLoS Biology 5: e219. doi: 0.1371/journal.pbio.0050219
    • Estes e todos os outros artigos em PLoS Biology estão disponíveis gratuitamente ‘online’.
    • Os artigos seguintes resumem a pigmentação adaptativa dos vertebrados:
    • Hoekstra HE (2006) Genetics, development and evolution of adaptive pigmentation in vertebrates. Heredity 97: 222-234. doi: 10.1038/sj.hdy.6800861
    • Este artigo está disponível gratuitamente para download no website do jornal Heredity: www.nature.com/hdy
    • Um resumo da investigação mais recente de Hopi Hoekstra está disponível no blog de John Hawks: http://johnhawks.net/weblog/topics/evolution/selection/hoekstra-2009-adaptive-pigmentation.html
  • Lamason RL et al. (2005) SLC24A5, a putative cation exchanger, affects pigmentation in zebrafish and humans. Science 310: 1782-1786. doi: 10.1126/science.1116238
  • Mwangi MM et al. (2007) Tracking the in vivo evolution of multidrug resistance in Staphylococcus aureus by whole-genome sequencing. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America 104: 9451-9456. doi: 10.1073/pnas.0609839104
  • Perry GH et al. (2007) Diet and the evolution of human amylase gene copy number variation. Nature Genetics 39: 1256-1260. doi: 10.1038/ng2123
  • Stefansson H et al. (2005) A common inversion under selection in Europeans. Nature Genetics 37: 129-137. doi: 10.1038/ng1508
  • Tishkoff SA et al. (2006) Convergent adaptation of human lactase persistence in Africa and Europe. Nature Genetics 39: 31-40. doi: 10.1038/ng1946

Web References

Resources

Author(s)

Jarek Bryk é investigador de pos-doutoramento no Max Planck Institute for Evolutionary Biology em Plön, Alemanha, onde procura localizar e analisar genes adaptativos em ratos.

Review

O artigo relata diversos exemplos interessantes de adaptações evolutivas a nível molecular em humanos. É abordada a dificuldade em clarificar relações causais entre sequências de ADN adaptativas e a aptidão do indivíduo, em humanos, e a necessidade de utilizar outros organismos em experiências.

O artigo fornece material excelente para questões orientadas para a compreensão da selecção natural e da aptidão em humanos e organismos usados em laboratório:

  1. Explique os processos envolvidos na selecção natural.
  2. O que entende por ‘aptidão’?
  3. Explique como o alelo da anemia falciforme confere uma vantagem selectiva em algumas populações humanas.
  4. Quais os problemas associados com o estabelecimento de relações causais entre sequências de ADN adaptativo e a aptidão em humanos?
  5. Construa um diagrama de fluxo para explicar o valor adaptativo da cor do pêlo em ratos Oldfield.
  6. Como conseguiram os cientistas correlacionar alterações genéticas em Staphylococcus aureus com o crescimento bacteriano e a reacção ao antibiótico?

Este artigo também permite aos alunos pesquisar a ligação entre ADN, sequência de aminoácidos, estrutura e função das proteínas na anemia falciforme. O texto é adequado para orientar a discussão em sala de aula sobre métodos e problemas associados com a investigação das bases moleculares das relações evolutivas e sobre a ética da utilização de populações humanas em testes genéticos. Estudos interdisciplinares poderão ser organizados em torno da história da ciência e da genética de populações evolutiva.

Mary Brenan, Reino Unido

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