Progredindo na evolução Understand article

Traduzido por Catarina Chagas. Lucy Patterson conversou com Èlia Benito, do Laboratório Europeu de Biologia Molecular, em Heidelberg, Alemanha, sobre como o animal favorito de Èlia, o anfioxo, pode ser a chave para compreender a evolução dos vertebrados.

No laboratório, Èlia usa
microscópios poderosos para
olhar de perto o cérebro do
anfioxo em desenvolvimento

Imagem cortesia de EMBL
Photolab

No fundo das praias ao redor do mundo, enterrado até as guelras, o anfioxo, parecido com uma minhoca, filtra o plâncton das ondas. Isso vem acontecendo há muito tempo. A cada dia, por mais de 520 milhões de anos, anfioxos – ou algo bem parecido com eles – filtraram e se alimentaram enquanto o muito mudava à sua volta. Peixes foram para a terra firme, dinossauros fizeram estrondo nas planícies, homens primitivos esfregaram gravetos para fazer fogo e, todo esse tempo, os anfioxos estavam lá. Se você tiver a chance de mergulhar, procure por eles. Eles podem não parecer muito dinâmicos, mas essas criaturas fascinaram especialistas em história natural e cientistas desde meados do século 19, incluindo Èlia Benito Gutierrez.

Seu interesse em anfioxos começou no primeiro ano do curso de biologia na Universidade de Barcelonaw1, Espanha. “Anfioxo era esse estranho animal parecido com uma minhoca mencionado no final da lista dos invertebrados, antes dos vertebrados”, lembra. Desde a grande revelação de Charles Darwin há 150 anos, muitos consideram o anfioxo a chave para compreender a origem dos vertebrados – o grupo dos animais com ossos, incluindo peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos, entre eles, claro, nós. A curiosidade de Èlia lhe trouxe, depois de um doutorado em Barcelona e um trabalho como pesquisadora em Londres, Reino Unido, ao Laboratório Europeu de Biologia Molecular (EMBL, na sigla em inglês)w2 em Heidelberg, Alemanha, e a um novo projeto pioneiro sobre anfioxos.

O projeto de Èlia faz parte de uma ciência ainda nova chamada ‘evo-devo’ – termo que, em inglês, designa o estudo combinado de evolução e desenvolvimento. Cientistas estão percebendo, cada vez mais, que os meandros do desenvolvimento – como um único ovo fertilizado dá origem à incrível diversidade de células e tecidos de um adulto – têm tido um grande impacto no curso da evolução.

Em vez de reinventar a roda a cada vez, as novas espécies surgem por meio de ajustes e adaptações em planos de desenvolvimento pré-existentes. Quanto mais cedo forem os ajustes, mais dramáticas são as mudanças nos resultados. Ajustes tardios, que produzem mudanças mais sutis, são menos prováveis de causar desvantagens importantes e, por isso, foram favorecidos. Isso tem implicações difíceis de entender: nas etapas mais iniciais do nosso desenvolvimento, nos parecemos mais com nossos ancestrais evolutivos. Por exemplo, você sabia que, enquanto embriões, passamos por um estágio em que começamos a desenvolver guelras como nossos predecessores peixes? Assim como embriões de peixes, nós desenvolvemos “arcos faríngeos”, seis bolsas carnudas de cada lado do pescoço, cada uma contendo uma vara de cartilagem. Adaptações evolutivas desde nosso passado aquático fizeram com que essas estruturas fossem reassimiladas no desenvolvimento da mandíbula e dos pequenos ossos do ouvido médio.

O anfioxo é uma de um grupo bastante seleto de criaturas que Darwin chamou de “fósseis vivos” – espécies que vivem ainda hoje, mas que são impressionantemente similares aos seus ancestrais fossilizados – e que são de grande ajuda para os cientistas que estudam “evo-devo”. Outros exemplos incluem crocodilos e o celacanto, um grande peixe que parece antigo e pensava-se extinto até que um espécime vivo foi descoberto em 1938. Através dos milênios, a Terra testemunhou grandes mudanças ambientais, estimulando a evolução de novas espécies e levando à extinção de outras. De fato, estima-se que 99,9% de todas as espécies que já existiram estão extintas agora.

Anfioxo
Imagem cortesia de Èlia Benito
Gutierrez

Apesar de tudo, essas espécies fósseis têm sobrevivido e permanecem relativamente inalteradas. Embora pareça que essas criaturas ficaram presas numa urdidura de tempo evolutivo, na verdade seu DNA passou por tantas mutações quanto os das outras espécies. Porém, por alguma razão, as mutações que causariam mudanças na forma do corpo nunca foram particularmente vantajosas. Para o anfioxo – uma criatura versátil que está confortável em muitos tipos de fundos de praias, em águas mornas ou mesmo geladas – talvez o estilo de vida de filtrar e se alimentar que ele compartilha com seus ancestrais nunca tenha estado, mesmo em 520 milhões de anos, sob ameaça.

Entretanto, o que mais empolga os fãs do anfioxo é a posição de seu ancestral mais antigo na árvore evolutiva. Como explica Èlia, “o que é realmente interessante é que o ancestral que o anfioxo representa era um tipo de vertebrado minimalista ou ‘embrionário’”. Embora seja oficialmente um invertebrado, o anfioxo tem muito em comum com os vertebrados. Ele possui um cordão nervoso oco que passa pela parte posterior do seu corpo, como nossa medula espinhal, e, próximo a isso, uma notocorda, uma haste firme, mas flexível que suporta o corpo, servindo como um tipo primitivo de espinha dorsal. Enquanto embriões, nós também temos uma notocorda, um resquício de nosso passado invertebrado, que, assim como os arcos faríngeos, é desfeita e reutilizada – para fazer os discos que ficam entre as vértebras. “Como parentes vivos mais próximos do ancestral de todos os vertebrados, os anfioxos nos dão um raro vislumbre de como nossos ancestrais evolutivos devem ter sido”, diz Èlia. E, realmente, as chances de uma espécie fóssil tão importante evolutivamente estar viva hoje devem ser incrivelmente pequenas.

Então, como os vertebrados evoluíram a partir desses ancestrais parecidos com os anfioxos? Claro que a evolução de cartilagem e ossos foi muito importante, mas a transição de invertebrados para vertebrados envolveu mais do que uma espinha dorsal. Ela foi também uma questão de escolha por um novo estilo de vida, particularmente de alimentação. Enquanto criaturas como o anfioxo ficam no fundo, esperando que a comida vá até elas, os vertebrados primitivos desenvolveram uma nova estratégia: predação. Eles começaram a desenvolver meios de ativamente encontrar comida, o que requer todo um conjunto de inovações, partes do corpo e habilidades. Um elemento chave para isso foi a evolução de uma nova cabeça.

Pode parecer óbvio, mas, para se alimentar ativamente, você precisa primeiro encontrar sua comida. Para isso, você precisa de órgãos sensitivos sofisticados para ver, cheirar, sentir o gosto e ouvir o alimento (embora nossos ancestrais invertebrados tivessem células ou órgãos sensitivos, os vertebrados primitivos desenvolveram órgãos pareados, como nossos olhos, permitindo-lhes sentir o mundo em três dimensões). Seria melhor desenvolver essas novas ferramentas para encontrar comida e o cérebro a que elas estariam ligadas perto de sua boca? Essas inovações, por sua vez, ampliaram o menu e, para a maioria dos vertebrados, a busca de dietas “menos digestíveis” resultou na evolução de uma mandíbula com dentes para morder e mastigar os alimentos antes de chegarem ao intestino.

Chave para o desenvolvimento e evolução da cabeça é um tecido chamado ‘crista neural’ – células especiais que se originam do mesmo tecido que faz nosso cérebro e nossa medula espinhal. Uma vez formadas, essas células começam a migrar por todo o corpo. O destino final de muitas delas é a cabeça, onde elas formam tecido conjuntivo, músculos, pele, nervos faciais, ossos e cartilagem, oferecendo um suporte crucial ao desenvolvimento dos olhos e dos receptores de paladar e olfato da boca e do nariz. Células da crista neural também contribuem (via arcos faríngeos) para os ossos da mandíbula, dentes e pequenos ossos do ouvido médio, essenciais para a evolução da audição.

Como o nome sugere (“amphys” significa “ambos” e “oxys” significa “afiado”; então “afiado nas duas pontas”), o anfioxo não tem uma cabeça. Outro ponto crucial é que ele também não tem crista neural, enquanto todos os vertebrados têm. Há alguma evidência, porém, de que células migratórias como uma pequena crista neural primitiva existem em anfioxos e tunicados, outro grupo invertebrado relacionado ao vertebrado ancestral. Estudando essas células, Èlia espera entender como a crista neural e, por extensão, a cabeça, evoluíram.

Você pode ter notado que a árvore evolutiva retratada em livros escolares é um pouco diferente desta. Foi tradicionalmente assumido, com base na semelhança física, que os vertebrados eram parentes mais próximos dos anfioxos do que dos bizarros tunicados. Quando larvas, os tunicados parecem girinos que nadam livremente, com uma notocorda e um cordão nervoso. Porém, ao amadurecer, eles se grudam ao fundo do oceano e se metamorfoseiam em criaturas parecidas com casos e que se alimentam por filtração. Sua notocorda e seu cordão nervoso se degeneram – alguns dizem que é quase como se eles comessem seu próprio cérebro! Porém, em 2006, olhando para o DNA, cientistas descobriram que, na verdade, os vertebrados compartilham um ancestral comum mais recente com os tunicados do que com os anfioxos. Esse ancestral comum provavelmente também se parecia com o anfioxo, mas, desde que nossas linhagens se separaram, nossa evolução tomou um rumo muito diferente: os vertebrados desenvolveram crista neural, uma cabeça e a predação, enquanto os tunicados se especializaram ainda mais em se tornar (quando adultos) filtradores sedentários Imagem cortesia de Lucy Patterson. Imagens menores cedidas por Lycaon (anfioxo), Nhobgood (tunicado), Drow_male (lampreias), Albert Kok (tubarão), Robbot (Darwin), Lmozero (peixe-bruxa); fonte das imagens: Wikimedia Commons

Desde que se completou a sequência genômica do anfioxo, em 2008, a pesquisa sobre ele realmente amadureceu. Cientistas como Èlia podem agora trabalhar em como o genoma dos vertebrados embrionários pode ter sido. Comparações com genomas de vertebrados, incluindo humanos, mostram grande similaridade. “Sabemos agora que o anfioxo tem todas as famílias importantes de genes que os vertebrados têm”, explica Èlia. “Todas as peças básicas para compor um vertebrado estão presentes. Então você poderia perguntar: por que o anfioxo não se desenvolve como vertebrado?” A resposta provável para isso também está em seu genoma. Diferentemente dos vertebrados, que têm muitos genes duplicados, todas as famílias de genes do anfioxo estão presentes como exemplares únicos. Isso confirma a suspeita de uma diferença crucial entre vertebrados e seu ancestral: no início da evolução dos vertebrados, todo o genoma do ancestral foi duplicado, duas vezes.

Estranhos eventos em nossa história evolutiva uma vez aumentaram bastante o número de genes disponíveis para a ação da seleção natural, e, portanto, com o potencial de evoluir. Com os genes originais cuidando das tarefas usuais para se compor um animal, havia muito mais liberdade para a seleção natural “brincar” com as outros cópias. Por meio dessa atividade, famílias e redes inteiras de genes foram recicladas para formar novas partes do corpo e sistemas. De fato, somente após as duplicações de genoma a crista neural realmente evoluiu e os vertebrados começaram a criar uma cabeça. Exatamente quando e como essas duplicações ocorreram ainda é incerto e, ao longo de milhões de anos de evolução, a maior parte dos genes copiados – e que não originaram novas características – se perdeu.

Então, em vez de apenas ficar ali parado na areia, sem fazer força para mudar, talvez o anfioxo tenha simplesmente evoluído o máximo que pôde com os genes que tinha; sem o fluxo de genes recém-copiados, chegou a um beco sem saída. Enquanto para muitas outras espécies esse beco significaria extinção, sempre há alguma parte da costa em que o anfioxo pode se enterrar.

Pesquisadores como Èlia estão mais do que felizes de que o anfioxo ainda esteja por aqui, pois isso oferece uma oportunidade única para estudar como os vertebrados primitivos evoluíram. O interesse particular de Èlia é na evolução do cérebro, e ela planeja montar um mapa detalhado do cérebro do anfioxo enquanto ele se desenvolve, mostrando as posições dos diferentes neurônios e que genes eles expressam. “Comparando o anfioxo às espécies vertebradas, podemos aprender como os mecanismos básicos já presentes nos vertebrados embrionários foram recrutados e reimplantados, eventualmente criando características complexas como memória ou habilidade de aprender”. Então, tendo ficado para trás todos esses anos, os anfioxos podem nos dar a chave para o nosso passado evolutivo, ajudando-nos a compreender as criaturas que somos hoje.

 


Web References

  • w1 – Para mais informações sobre a Universidade de Barcelona, acesse: www.ub.edu
  • w2 – Saiba mais sobre o Laboratório Europeu de Biologia Molecular em: www.embl.org

Resources

  • Para ler mais sobre o grupo do EMBL onde Èlia trabalha e a história de seu supervisor, Detlev Arendt, veja:
  • Para aprender sobre como uma nova árvore da vida – traçando o curso da evolução – foi estabelecida, veja:
    • Hodge R (2006) A new tree of life. Science in School 2: 17-19. www.scienceinschool.org/2006/issue2/tree
    • O site Understanding Evolution, da Universidade da Califórnia, em Berkeley (EUA), fornece informações confiáveis e atualizadas sobre mecanismos, teorias, evidências e pesquisas em evolução. O site inclui vários recursos para ensinar sobre evolução, incluindo “evo-devo” (voltado ao público norte-americano). Acesse: Berkeley’s evolution website (http://evolution.berkeley.edu) ou use o link direto: http://tinyurl.com/yc27f4n
  • Uma ótima reportagem sobre “evo-devo” em The New York Times:
  • Dois livros populares de ciência sobre pesquisas “evo-devo”:
    • Shubin N (2008) Your Inner Fish. A Journey into the 3.5 Billion-Year History of the Human Body. London, UK: Allen Lane. ISBN: 9780713999358
    • Carroll SB (2005) Endless Forms Most Beautiful: The New Science of Evo Devo and the Making of the Animal Kingdom. New York, NY, USA: Norton. ISBN: 978039306016
  • Um comentário sobre a importância da publicação do genoma do anfioxo, incluindo mais informações sobre o animal, publicado na Nature:
  • Leia mais sobre seleção natural e evolução molecular em:

Institutions

Author(s)

Lucy Patterson concluiu seu doutorado na Universidade de Nottingham, Reino Unido, em 2005, e desde então trabalha como pesquisadora de pós-doutorado, primeiro em Oxford, Reino Unido, depois em Freiburg e Colônia, na Alemanha. Durante esse tempo, ela trabalhou para responder várias questões sobre a biologia do desenvolvimento, o estudo de como os organismos crescem e se desenvolvem a partir de um ovo fertilizado até se tornarem adultos maduros, usando embriões de peixes-zebra. Ela tem um interesse amplo e é uma entusiasta da ciência, e está atualmente desenvolvendo sua própria carreira embrionária como divulgadora científica.

Review

Este fascinante artigo enfatiza a importância da ciência “evo-devo” e como o invertebrado anfioxo têm ligações evolutivas com os vertebrados, variando desde o desenvolvimento da cabeça até uma explicação para uma hérnia de disco. A quantidade de informação que o artigo cobre faz dele um recurso valioso para professores e estudantes de 16 a 18 anos.

A informação pode ser usada para ensinar sobre a evolução de vertebrados, em particular o desenvolvimento do sistema nervoso e dos órgãos sensitivos, e para suscitar uma discussão em grupo sobre por que os anfioxos oferecem um modelo valioso para o desenvolvimento dos vertebrados. Há possibilidades de interdisciplinaridade com geologia (registros fósseis) e com tecnologias de informação e comunicação (construção de árvores filogenéticas).

O artigo pode ser um ótimo exercício de interpretação de texto, usando, por exemplo, as seguintes questões.

  1. Por que “evo-devo” é uma ciência importante?
  2. O que significa fóssil vivo?
  3. O que você entende pelos termos “vertebrado embrionário” e “genoma embrionário”?
  4. Quais foram as pressões seletivas que levaram ao desenvolvimento da cabeça?
  5. O que você entende pela expressão “duplicação de genes” e por que ela é crucial para o desenvolvimento dos vertebrados?

Para os mais ousados, há o potencial para análises de semelhanças de DNA e filogenéticas entre anfioxos e humanos.

Mary Brenan, Reino Unido

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