Hidrogénio: o transportador de energia limpa do futuro? Understand article

Traduzido por António Daniel Barbosa. O hidrogénio pode ser o combustível do futuro mas como podemos produzi-lo de uma forma sustentável? Karin Willquist explica.

Imagem cortesia de janeff /
iStockphoto

O hidrogénio tem sido apelidado de “transportador de energia do futuro” – porque pode ser oxidado numa célula de combustível produzindo eletricidade, por exemplo para fornecer energia aos automóveis, sem a libertação de dióxido de carbono (CO2), e pode ser obtido em locais remotos sem uma infraestrutura de eletricidade. Em contraste com os recursos disponíveis como o gás natural e a gasolina, o hidrogénio tem de ser produzido, o que o torna um transportador de energia e não um combustível.

Um sistema energético no qual o hidrogénio é usado para fornecer energia – uma economia do hidrogénio – foi proposto por John Bockris em 1970; em 1977, um acordo internacional de implementação do hidrogénio foi estabelecido no sentido de trabalhar em direção a essa economiaw1.

O hidrogénio é principalmente utilizado atualmente como reagente em vez de transportador de energia, mas não há dúvidas quanto ao seu potencial para transformar os nossos sistemas energéticos e de transporte. No entanto, libertar este potencial não é fácil. Muitos dos combustíveis atualmente usados são líquidos, sólidos ou gases com alta energia por volume (densidade de energia). Porém, o hidrogénio possui uma baixa densidade de energia: a uma dada pressão, queimar um litro de hidrogénio produz um terço da energia correspondente à queima de um litro de metano. Isto coloca problemas de armazenamento, distribuição e utilização que estão a ser estudados pelos cientistas s (Schlapbach & Züttel, 2001)w2. No entanto, um desafio mais fundamental é a produção de hidrogénio de uma forma sustentável. Este será o aspeto aqui abordado.

Formas de produzir hidrogénio

O hidrogénio é um elemento abundante na superfície terrestre, normalmente ligado ao carbono nos carboidratos (em plantas) ou ao oxigénio na água (H2O). No entanto, o gás hidrogénio (H2), existe em pequenas quantidades na Terra. Um dos desafios à produção de hidrogénio de uma forma sustentável consiste na libertação de H2 das suas ligações com o carbono e o oxigénio.

Atualmente, o H2 é produzido principalmente a partir de combustíveis fósseis (por exemplo, o gás natural) através de conversão por vapor: aquecendo os combustíveis a altas temperaturas com aguaw2:

Um dos autocarros de
Londres alimentado a células
de combustível de hidrogénio

Imagem cortesia de Felix O;
Fonte da imagem: Flickr

CH4 + H2O → CO + 3H2                                              (1)

CO + H2O → CO2 + H2                                                (2)

No entanto, este método baseia-se em combustíveis fósseis e liberta CO2, causando os mesmos problemas de emissão da queima de combustíveis fosseis. A conversão por vapor é apenas sustentável se somente forem utilizados hidrocarbonetos renováveis, como o biogás, porque o CO2 libertado terá sido anteriormente absorvido na produção destes hidrocarbonetos.

O H2 também pode ser produzido através de eletrólisew2, na qual a eletricidade é usada para separar a H2O em H2 e oxigénio:

2H2O → 2H2 + O2                                                       (3)

Carregadores de telemóvel
portáteis da Powertrekk.
Basta adicionar água e após
alguns minutos terá uma
bateria para o telemóvel

Imagem cortesia de David
Berkowitz; Fonte da imagem:
Flickr

Este método pode ser sustentável se a eletricidade provier de uma fonte renovável como o vento, as ondas ou sol. O H2 pode então ser usado para armazenar a energia de dias ventosos quando as estações eólicas produzirem mais eletricidade do que a que pode ser consumida.

Curiosamente, a cisão da água ocorre naturalmente nos oceanos, uma vez que algas microscópicas e cianobactérias usam a energia solar para quebrar a água num processo designado por biofotólise (Equação 3). No entanto, a taxa de produção de H2 é extremamente lenta.

Esforços têm sido feitos no sentido de aumentar a taxa de produção em condições controladas usando microrganismos modificados, mas os processos são ainda muito lentos e dispendiosos para se tornarem uma fonte de H2 realista num futuro próximo (Hallenbeck & Ghosh, 2009).

Por último, biohidrogenio pode ser produzido a partir de culturas e de resíduos industriais, florestais e agrícolas, usando bactérias. Tal como nós, estas bactérias oxidam materiais vegetais como fonte de energia mas, ao contrário de nós, vivem em ambientes anaeróbicos (sem oxigénio). Na respiração aeróbia, o O2 é usado para oxidar açúcares, por exemplo

C6H12O6 + 6O2 → 6CO2 + 6 H2O                            (4)

Pelo contrário, para oxidar a maior quantidade possível de substrato e, desta forma, otimizar os ganhos energéticos, estas bactérias anaeróbicas reduzem protões, libertados durante a oxidação do substrato, a H2 (Equacao 6, em baixo).

Bichos escaldantes

Figura 1: C. saccharolyticus
bacteria under the electron
microscope

Imagem cortesia de Harald
Kirsebom

Durante o meu doutoramento investiguei as capacidades de produção de hidrogénio de uma destas bactérias, Caldicellulosiruptor saccharolyticus (Figura 1), que vive em fontes termais: ambientes anaeróbicos a 70°C, com baixos níveis de carboidratos disponíveis. Esta bactéria é de particular interesse por ser duas vezes mais eficiente do que a maioria das bactérias usadas na produção de H2.

Ao contrário dos humanos, a bactéria C. saccharolyticus obtém energia a partir de uma ampla gama de componentes vegetais: não apenas de glucose, mas também de, por exemplo, xilose (Willquist et al., 2010).

Tal permite à bactéria produzir H2 a partir de resíduos provenientes do processamento de batatas, açúcar e cenouras, bem como de resíduos industriais da produção de celulose e papel, ou desperdícios agrícolas como palha.

Este é um início promissor, mas mesmo a bactéria C. saccharolyticus liberta apenas 33% do potencial de H2 que poderia ser libertado do substrato. A equação 5 apresenta o potencial da completa oxidação da glucose, libertando 12H2 por molécula de glucose. A equação 6 mostra a fermentação na ausência de luz executada pela bactéria C. saccharolyticus, que liberta apenas 4H2 (33%) por molécula de glucose. A restante energia é libertada sob a forma de acetato (CH3COOH).

Conversão total da glucose a H2: C6H12O6 + 6H2O → 12H2 + 6CO2       (5)

Fermentação na ausência de luz: C6H12O6 + 2H2O → 4H2 + 2CO2 + 2CH3COOH           (6)

A libertação do H2 restante a partir do acetato requer energia externa. Em alternativa, o gás metano (CH4) – que pode libertar H2 através de conversão por vapor (Equações 1 e 2) – pode ser produzido a partir do acetato. Felizmente existem três formas promissoras de o fazer (Figura 2).

Figura 2: Produção de biohidrogénio a partir de resíduos. Os resíduos são degradados e oxidados a H2 e acetato pela bactéria C. saccharolyticus. O acetato é convertido a metano (CH4) através de digestão anaeróbica (3), ou a H2 através de uma célula de combustível microbiana (2) ou por fotofermentação (1). O CO2 produzido é absolvido pelo substrato, o que resulta num processo neutro na produção de CO2
Images courtesy of HHolger / pixelio.de (resíduos), Michael Cavén (fabrica de papel), Keith Bryant (árvores), Marcel Verhaart (C. saccharolyticus), Jakub Gebicki (fotobiorreator), Gokce Avcioglu, METU Biohydrogen Research Lab, Turkey (reator de digestão anaeróbica) and Karin Willquist (célula de combustível microbiana)
  1. Usando a luz solar para converter acetato a H2 através de bactérias fotofermentativas (Equação 7)w3. No entanto, tal como a produção de H2 por algas, este processo é atualmente demasiado lento e dispendioso para ser viável comercialmente num futuro próximo (Hallenbeck & Ghosh, 2009).

    2CH3COOH + 4H2O → 8H2 + 4CO2                                 (7)
     

  2. Usando eletricidade para impulsionar a reação do acetato a H2 numa célula de combustível com uma mistura de espécies bacterianas (Equacao 7)w4. Este é um conceito elegante mas a sua atual aplicação é limitada pelas baixas taxas de produção (Hallenbeck & Gush, 2009). (Para aprender como construir a sua própria célula de combustível microbiana, ver Madden, 2010.)
     
  3. Usando produtores de metano (Archaea) para digerir o acetato, gerando metano (Equação 8). A combinação de fermentação na ausência de luz (Equação 6) e produção de metano é conhecida como o processo hitano (hidrogénio + metano), e pode converter aproximadamente 90% do substrato inicial a H2 e metano.

    CH3COOH → CH4 + CO2                                                (8)

    O metano pode então ser convertido por vapor libertando H2.

O Hyundai ix35 FCEV,
alimentado por uma célula de
combustível de hidrogénio

Imagem cortesia de Bull-Doser;
Fonte da imagem: Wikimedia
Commons

Para ter uma ideia do processo de hitano: se quatro pessoas numa casa comerem 10 kg de produtos à base de batata num mês, o resíduo produzido poderia abastecer 0.5% das suas necessidades energéticas domésticas mensais (3500 kWh), desde que o H2 produzido fosse usado diretamente (para evitar perdas de energia) e que a casa estivesse equipada com células de calor e energiaw5. É claro que mais hidrogénio poderia ser produzido a partir de outros resíduos – 0.5% seria apenas das batatas.

Esta é uma estimativa grosseira do potencial do processo de hitano, baseada em a) 30% de perda de energia na produção de H2 e CH4 (hitano) e b) 30% na posterior conversão por vapor do CH4 a H2. O passo de conversão por vapor (b) é usado na produção de hidrogénio a partir de gás natural e é uma técnica comercial bem desenvolvida. A produção de hitano (a), no entanto, não é ainda tão eficiente, apesar de estudos estarem a ser realizados no sentido de melhorar a eficiência para alcançar 70% (como no exemplo) e, desta forma, tornar a produção de biohidrogénio competitiva em relação à conversão por vapor de combustíveis fósseis para produzir hidrogénio.

Apesar de terem existido desenvolvimentos recentesw6 (ver caixa), é muito cedo para fornecer uma estimativa confiável para quando a produção sustentável de H2 poderá desempenhar um papel significativo no fornecimento da energia que usamos. No entanto, tal como o poeta Mark Strand disse um dia, “O futuro começa sempre agora.”

 

Pesquisa sobre armazenamento e produção de hidrogénio

Armazenar hidrogénio de uma forma segura e eficiente é um dos principais desafios tecnológicos para adotar o hidrogénio como transportador de energia. O Institut Laue-Langevin (ILL)w7 estabeleceu-se solidamente na investigação sobre economia do hidrogénio, usando difração de neutrões para monitorizar reações de hidrogenação e desidrogenação em potenciais materiais de armazenamento de hidrogénio. Para descobrir mais, visite a página de internet do ILLw7.

Os poderosos raios-X do European Synchrotron Radiation Facility (ESRF)w8 examinaram recentemente os complexos mecanismos pelos quais o hidrogénio é produzido por enzimas designadas hidrogenases. A maioria destas enzimas atua em condições anaeróbicas e são, na verdade, inibidas na presença de oxigénio. As hidrogenases que permanecem ativas em condições aeróbias são, desta forma, de grande interesse para tecnologias como células de combustível enzimáticas e produção de hidrogénio por ação da luz. Uma equipa de cientistas alemães apresentou recentemente a estrutura cristalina de uma destas enzimas (Fritsch et al., 2011) – será um passo em frente na economia do hidrogénio?

O ILL e ESRF são membros do EIROforumw9, o editor da Science in School.


 


References

  • Fritsch J et al. (2011) The crystal structure of an oxygen-tolerant hydrogenase uncovers a novel iron-sulphur centre. Nature 479: 249–252. doi: 10.1038/nature10505
  • Hallenbeck P, Ghosh D (2009) Advances in fermentative biohydrogen production: the way forward? Trends in Biotechnology 27: 287–297. doi: 10.1016/j.tibtech.2009.02.004
  • Madden D (2010) The microbial fuel cell: electricity from yeast. Science in School 14: 32-35. www.scienceinschool.org/2010/issue14/fuelcell
  • Rifkin J (2002) The Hydrogen Economy: the Creation of the Worldwide Energy Web and the Redistribution of Power on Earth. New York, NY, USA: JP Tarker. ISBN: 1585421936
  • Schlapbach L, Züttel A (2001) Hydrogen-storage materials for mobile applications. Nature 414(6861): 353–358. doi: 10.1038/35104634
  • Willquist K, Zeidan A, van Niel E (2010) Physiological characteristics of the extreme thermophile Caldicellulosiruptor saccharolyticus: an efficient hydrogen cell factory Microbial Cell Factories 9: 89. doi: 10.1186/1475-2859-9-89
  • Microbial Cell Factories é uma revista de acesso livre pelo que o artigo encontra-se disponível gratuitamente

Web References

  • w1 – Para aprender mais sobre o acordo de implementação do hidrogénio da Agência Internacional da Energia, consultar: http://ieahia.org
  • w2 – Para aprender mais sobre as perspetivas do hidrogénio, consultar a análise de Joseph Romm na página da internet de Environmentalists for Nuclear Energy (www.ecolo.org; em “documents”) ou através da ligação: http://tinyurl.com/77dhx8x
    • See also Joan Ogden’s peer-reviewed analysis Hydrogen as an Energy Carrier: Outlook for 2010, 2030 and 2050 on the website of the University of California: http://escholarship.org/uc/item/9563t9tc

  • w3 – Para um vídeo sobre como o hidrogénio é libertado a partir da biomassa de batatas usando a luz solar, consultar: www.biohydrogen.nl/hyvolution
  • w4 – Para aprender mais sobre células de combustível microbianas, consultar: www.microbialfuelcell.org
  • w5 – Para saber mais sobre células de calor e energia, consulta: www.fchea.org/index.php?id=57
  • w6 – Para ler sobre progressos recentes de um posto de combustível de biohidrogénio em Taiwan, consultar a página de internet de Focus Taiwan (http://focustaiwan.tw) ou usar a ligação: http://tinyurl.com/7jao2tp
  • w7 – ILL é um centro de investigação internacional de vanguarda em ciência e tecnologia de neutrões, com sede em Grenoble, França. Para saber mais, consultar: www.ill.eu
    • Para mais informação sobre a investigação realizada no ILL sobre a economia do hidrogénio, consultar a página da internet do ILL ou usar a ligação: http://tinyurl.com/illhydrogen

  • w8 – Situado no mesmo campus do ILL, em Grenoble, França, o ERSF opera a mais potente fonte de radiação synchroton na Europa. Para saber mais, consultar: www.esrf.eu
    • Para mais informação sobre a investigação do ERSF no armazenamento de hidrogénio, consultar a página da internet do ESRF ou usar a ligação: http://tinyurl.com/87bnj4c

  • w9 – Para saber mais sobre o EIROforum, consultar: www.eiroforum.org

Author(s)

A engenheira química Karin Willquist obteve o seu doutoramento sobre produção de biohidrogénio na Universidade de Lund, Suécia. Os seus interesses de investigação incluem fisiologia microbiana, otimização de processos e atividades de divulgação. Trabalha na Universidade de Lund usando simulações de computador para melhorar o processo de hitano. Organiza também cursos de bioenergia para uma plataforma multidisciplinar de investigação em bioenergia (LUBiofuels) na Universidade de Lund. Neste momento encontra-se a escrever um livro sobre bioenergia para estudantes do secundário.

Review

Após a publicação do livro de Jeremy Rifkin sobre a economia do hidrogénio (2002), este tópico é frequentemente abordado nos meios de comunicação social como uma possibilidade real num futuro próximo. Outro assunto comum sobre o hidrogénio é o seu suposto papel como uma fonte de energia limpa. Neste artigo, Karen Willquist dá-nos uma visão global das questões envolvidas na produção de hidrogénio e das investigações em curso – incluindo o seu próprio trabalho – sobre as formas sustentáveis de alcançar este objetivo.

Dada a abordagem clara da autora, o artigo é particularmente adequado para professores de ciências e alunos do secundário (idades entre os 14-19) que desejem aumentar os seus conhecimentos neste tópico complexo. Além disso, os professores e alunos beneficiarão dos numerosos recursos listados.

Este artigo será pertinente em aulas sobre bioquímica (respiração, fermentação e fotossíntese), física (células de combustível, termodinâmica: energia e eficiência), ciências ambientais (fontes energéticas, combustíveis fósseis e fontes renováveis), biologia (algas, bactérias, cianobactérias e Archaea) e química orgânica (hidrocarbonetos e conversão por vapor). Poderá igualmente fornecer um valioso suporte de leitura antes de uma visita a uma central elétrica ou laboratório de investigação que trabalhe em células de combustível ou produção, uso ou armazenamento de hidrogénio.

Este artigo pode ser usado para iniciar uma discussão sobre as diferenças entre fontes de energia e transportadores de energia; os problemas do uso e armazenamento do hidrogénio; e cenários possíveis da transição da nossa economia de hidrocarbonetos para uma economia do hidrogénio.

Perguntas de compreensão adequadas incluem:

  1. Qual dos seguintes aplica-se à respiração, à fermentação na ausência de luz, ou a ambos?
    • A presença de glucose
    • A presença de oxigénio
    • A ausência de oxigénio
  2. Qual dos seguintes não é um processo envolvido na conversão do acetato em hidrogénio?
    • Fermentação na ausência de luz
    • O uso de eletricidade numa célula de combustível microbiana
    • O processo de hitano

Giulia Realdon, Itália

License

CC-BY-NC-ND

Download

Download this article as a PDF